terça-feira, 21 de abril de 2009

A CARA DO BRASIL - canção



Conheci Celso Viáfora em 1983, no primeiro festival de Avaré. Eu noviço na área, ele já experiente, tendo sido finalista no famoso festival da TV Cultura, e premiado em muitos outros. Ficamos amigos de cara, pois, além de ser totalmente do bem, ele também é formado em direito. E corinthiano roxo. Essa rara equação música - direito - Corinthians nos rendeu, desde sempre, muitas conversas à frente de garrafas de cerveja.


Naquele primeiro festival, ele não foi premiado, e após o evento fez um samba lindo, ainda inédito (que prometo que vou gravar um dia), chamado “Coração afobado”, falando daquela sua experiência de desclassificado. No ano seguinte, voltou com a poderosa “Grão da terra”, e arrebatou o primeiro lugar. Como em 1985 foi o vice-campeão, decidimos tirá-lo da competição, e desde então já fez de tudo no pedaço : foi jurado, fez shows, foi membro da comissão de pré-seleção, participou do encontro de letristas, das rodas de violão, dos jogos de futebol... virou sócio honorário da Fampop, como outros que por lá passaram e fizeram história (como, dentre outros, Jean Garfunkel, Lenine, Moacyr Luz, Rafael Altério, Chico César, Zeca Baleiro, Jorge Vercilo, Professor Pasquale, Zuza Homem de Mello...)


Mas o fato é que o Celso se tornou um dos maiores compositores de uma geração que ficou órfã, no panorama da música popular produzida no Brasil. A geração que era pra surgir no pós – 85, quando foi realizado o último festival de TV realmente influente, aquele que lançou Leila Pinheiro, e que acabou com a vitória de Tetê Espíndola cantando “Escrito nas estrelas”, de Arnaldo Black e Carlos Rennó. Depois daquele festival, as coisas mudaram para pior, e o jabá se consolidou cada vez mais como único critério de execução nas rádios. Não é à toa que Zuza Homem de Mello e Jairo Severiano, ao escreverem a estupenda obra (em dois volumes) "A canção no tempo", pela editora 34, tenham parado exatamente no ano de 1985, como o último em que valeria a pena ser dimensionada a trajetória da música popular feita no Brasil. Aliás, quem gosta desse assunto não pode deixar de ter esses dois livros. É referência obrigatória.


Voltando ao que estava dizendo : é claro que esse novo cenário tem a ver, também, com a extinção dos grandes festivais televisivos. Até porque esses eventos eram a única janela realmente democrática para surgimento de novos compositores e intérpretes. Vários dos meus ídolos saíram dos festivais, desde aqueles dos célebres anos 60 (Chico, Gil, Caetano, Edu Lobo, Milton Nascimento, Dori Caymmi, Elis Regina, MPB-4), até os dos anos 70 (Ivan Lins, Djavan, Alceu Valença, Luiz Melodia, Walter Franco...). Embora sempre existam teorias conspiratórias sobre os resultados de alguns desses eventos, a verdade é que os festivais das TVs Excelsior, Record, Tupi, Globo, representavam outros tempos, nos quais novas músicas viravam sucesso do dia pra noite porque o público dos festivais assim o queria, e não por conta de elucubrações prévias de gravadoras, como passou a ocorrer a partir do final dos anos 80. A partir daí, tiraram a opção de escolha do público, com o fim dos festivais, iniciando a invenção sucessiva de gêneros monolíticos, que passaram a dominar o mercado a cada verão : inventaram a onda sertaneja, depois a onda do axé, depois a onda do funk, depois... sempre temperada com muito, muito jabá.
Se isso não bastasse, a maior divulgadora e incentivadora dos novos compositores havia falecido no início dos anos 80, sem deixar sucessora : Elis Regina. Que lançou em primeira mão não apenas Ivan, Milton, Gil, João Bosco... mas também Jean Garfunkel, Thomas Roth, Renato Teixeira. E que, imagino, lançaria, dentre outros, Celso Viáfora.

Celso é um dos expoentes de uma geração que cresceu aprendendo a fazer músicas com harmonia, melodia, letra, canções que tinham idéia e elaboração. No mundo pós-Elis Regina, pós-festivais, ou seja, na geração jabá, esse tipo de artista deixou de fazer sentido. Com a falta de espaço, muitos desses criadores, a partir do meio dos anos 80, passaram a mostrar seu trabalho em festivais como o de Avaré. Celso passou por lá, Luiz Carlos da Vila também, Kleber Albuquerque também, Rita Ribeiro também, Virginia Rosa também, Ceumar também (isso pra não não falar dos sempre citados Lenine, Chico César, Zeca Baleiro, Jorge Vercilo, Moacyr Luz). Zuza resumiu isso num texto de 1996 : "Avaré viu e ouviu primeiro". Pois se os festivais das redes de TV não tivessem parado em 1985, teria sido o Brasil como um todo, do Oiapoque ao Chuí, a ouvir esses nomes e suas canções, há muitos e muitos anos...


Celso Viáfora é um artista completo, como compositor, letrista, instrumentista e intérprete. Imagino se, com essa capacidade de fazer canções inventivas e poderosas, ele tivesse iniciado carreira em outras épocas menos tormentosas para criadores do seu naipe. Estaria, não tenho dúvidas, ao lado dos maiores nomes da chamada MPB, não apenas para poucos iniciados, jornalistas e críticos, mas para o público consumidor de música popular brasileira.


Em vinte e tantos anos de carreira, gravou uma meia dúzia de discos, gerando uma obra com várias canções irretocáveis. Iniciou uma bem sucedida parceria com Ivan Lins, do qual destaco pelo menos um clássico : o samba “Emoldurada”. E tem uma outra parceria que gerou uma usina de canções bem feitas e que merecem ser conhecidas : com o baiano de Serrinha Vicente Barreto, compositor cheio e suingue, com uma mão de direita inigualável no violão.

Pois pelo menos uma das criações da fábrica Barreto/Viáfora é uma das minhas canções preferidas : “A cara do Brasil”, gravada por Celso e também por Ney Matogrosso. Poucas vezes um texto descreveu com tanta lucidez, riqueza poética e criatividade os contrastes e contradições do brasileiro. Tive a honra de cantar no vocal que gravou a primeira versão, no disco homônimo, do próprio Celso, produzido por Helton Altman, no antigo estúdio da RGE, na Avenida Marquês de São Vicente.
Eis, enfim, uma canção que poderia fazer parte de qualquer antologia da música popular produzida no Brasil, dos últimos 20 anos.
De cabeceira, sem dúvida.


A CARA DO BRASIL

Eu estava esparramado na rede

jeca urbanóide de papo pro ar

me bateu a pergunta, meio à esmo:

na verdade, o Brasil o que será?

O Brasil é o homem que tem sede

ou quem vive da seca do sertão?

Ou será que o Brasil dos dois é o mesmo

o que vai é o que vem na contra-mão?
O Brasil é um caboclo sem dinheiro

procurando o doutor nalgum lugar

ou será o professor Darcy Ribeiro

que fugiu do hospital pra se tratar

A gente é torto igual Garrincha e Aleijadinho

Ninguém precisa consertar

Se não der certo a gente se virar sozinho

decerto então nunca vai dar

O Brasil é o que tem talher de prata

ou aquele que só come com a mão?

Ou será que o Brasil é o que não come

o Brasil gordo na contradição?

O Brasil que bate tambor de lata

ou que bate carteira na estação?

O Brasil é o lixo que consome

ou tem nele o maná da criação?

Brasil Mauro Silva, Dunga e Zinho

que é o Brasil zero a zero e campeão

ou o Brasil que parou pelo caminho:

Zico, Sócrates, Júnior e Falcão

A gente é torto igual Garrincha e Aleijadinho...

O Brasil é uma foto do Betinho

ou um vídeo da Favela Naval?

São os Trens da Alegria de Brasília

ou os trens de subúrbio da Central?

Brasil-globo de Roberto Marinho?

Brasil-bairro: Carlinhos-Candeal?

Quem vê, do Vidigal, o mar e as ilhas

ou quem das ilhas vê o Vidigal?

O Brasil encharcado, palafita?

Seco açude sangrado, chapadão?

Ou será que é uma Avenida Paulista?

Qual a cara da cara da nação?

A gente é torto igual Garrincha e Aleijadinho ...


Serviço – para ver e ouvir “Cara do Brasil” com Celso Viáfora
http://www.youtube.com/watch?v=tQCJfC-eiJI

para ouvir a versão de Ney Matogrosso :

http://www.youtube.com/watch?v=GUQ7nWb_d58&feature=related

domingo, 5 de abril de 2009

GUARDANAPOS DE PAPEL - canção



Canção, eis a paixão da minha existência.

Sendo mais específico, a chamada canção popular urbana : aquela que todos os que tem mais de vinte e cinco anos aprenderam a conhecer, ouvir e curtir, seja da lavra de um Chico Buarque, seja de um Nando Reis, seja de um Tom Jobim, seja de um Stevie Wonder, seja de uma Adriana Calcanhoto, seja de um Paul Mcartney, seja de um Vander Lee, seja de um Lenine...

O que motivou cada um desses autores a fazer essa ou aquela canção ? Em que contexto foi criada ? Quais os seus elementos ?

Falo da canção cujo formato se delineou no decorrer do século XX, com melodia, letra, harmonia, ritmo. A partir dos anos 60, essa canção popular deixou de ser um objeto apenas de entretenimento, e passou a representar algo mais sólido, culturalmente falando. No Brasil, passou a ter um patamar similar à literatura, ao teatro... Eu me acostumei a ver a canção a partir desse ângulo de visão. Nos anos 70, por exemplo, cada disco novo do Chico Buarque, do Gilberto Gil, do Milton Nascimento, era recebido como um baú cheio de maravilhas. A conjuntura política de então conferia um sentido diferente àquelas obras, estimulava os autores a usar cada vez mais criatividade para driblar a proibição de falar sobre determinados temas ou abordagens. Certamente, esse clima pesado estimulou a criação. Porisso, as canções daqueles LPs lançados naqueles anos ficaram entranhados em nossas almas. Cada acorde, cada verso daquelas músicas estão em nossas memórias afetivas, tanto os momentos mais brilhantes, como até aqueles nem tão criativos.

Há alguns anos, teve início uma discussão, iniciada pelo escritor e crítico musical José Ramos Tinhorão, tendo como eixo o entendimento de que a “canção acabou”, e que o rap seria a nova forma de instrumentalizar a música popular, nesse cenário repleto de inovações tecnológicas, digitalização, difusão da música na rede Web, etc. Os novos formatos de canção popular, diz Tinhorão, privilegiam o ritmo e a palavra, sendo que outros elementos, como harmonia e melodia, fariam parte de um espécime em extinção.

A questão é polêmica, e prometo voltar a ela num outro post. Por hora, quero dizer que tudo o que escrevi até aqui, na verdade, é só um preâmbulo para falar de uma das minhas canções de cabeceira, daquelas que o autor acertou “na veia”. Isso não acontece a toda hora. Às vezes, é por causa da letra. Outras vezes, por causa do refrão. Ou por causa da melodia. Ou daqueles acordes. Ou do tema. Ou da construção da coisa. Sabemos reconhecer quando a canção nos pega, nos toca, de alguma maneira. Falei disso na letra de uma canção que fiz com Edu Santhana, “Decolagem” : “vai saber / se na palavra ou no som / acende um brilho de néon/ bem lá no fundo, coração, alma da gente” . Em suma, falo de canção que nos faz ter uma inveja saudável, tipo “essa eu queria ter feito”.

E eu queria ter feito "Guardanapos de papel".

Canção criada por um uruguaio, Leo Masliah, sob título “Birromes y servilletas”. Essa canção foi vertida para o português pelo carioca Carlos Sandroni, com o nome “Guardanapos de papel”, quase uma tradução literal da letra original. A irmã de Carlos, Clara Sandroni, gravou essa versão, no disco que lançou pela gravadora Kuarup, em 1987.

Me apaixonei, fiquei enlouquecido por essa música. Tanto que quando produzi o CD de minha irmã Lucila, quase dez anos depois, sugeri que ela a gravasse. Mas a canção não combinava com o restante do disco. Foi então que Milton Nascimento a gravou, em seu disco “Nascimento”. Lindamente. Em duas versões : a original, em espanhol, e a versão em português. Para os que conheciam o original em espanhol, a versão em português ficou muito mais bonita. A versão de Leo Masliah é mais rápida, quase irônica. As versões de Clara Sandroni e, principalmente, a de Milton Nascimento, conferiram um lirismo, uma força à canção que a matriz não tinha.

É uma elegia, uma ode aos poetas da canção. Melodia inspirada, letra poderosa, com imagens de grande beleza. Se tivesse sido lançada num dos discos de Milton Nascimento dos anos 70, certamente seria uma referência, cantada nos bares país e mundo afora, indicada em provas do vestibular... Como só veio à luz quando a mídia já não se importa mais pelos discos de Milton Nascimento, ela ficou quase como uma obscura pedra preciosa, compartilhada silenciosamente por aqueles mais ligados ao universo da música.


“Guardanapos de papel” é uma das minhas canções de cabeceira.


Na minha cidade tem poetas, poetas
Que chegam sem tambores nem trombetas
Trombetas e sempre aparecem quando
Menos aguardados, guardados, guardados
Entre livros e sapatos, em baús empoeirados
Saem de recônditos lugares, nos ares, nos ares
Onde vivem com seus pares, seus pares
Seus pares e convivem com fantasmas
Multicores de cores, de cores
Que te pintam as olheiras
E te pedem que não chores
Suas ilusões são repartidas, partidas
Partidas entre mortos e feridas, feridas
Feridas mas resistem com palavras
Confundidas, fundidas, fundidas
Ao seu triste passo lento
Pelas ruas e avenidas
Não desejam glorias nem medalhas, medalhas
Medalhas, se contentam
Com migalhas, migalhas, migalhas
De canções e brincadeiras com seus
Versos dispersos, dispersos
Obcecados pela busca de tesouros submersos
Fazem quatrocentos mil projetos
Projetos, projetos, que jamais são
Alcançados, cansados, cansados nada disso
Importa enquanto eles escrevem, escrevem
Escrevem o que sabem que não sabem
E o que dizem que não devem
Andam pelas ruas os poetas, poetas, poetas
Como se fossem cometas, cometas, cometas
Num estranho céu de estrelas idiotas
E outras e outras
Cujo brilho sem barulho
Veste suas caudas tortas
Na minha cidade tem canetas, canetas, canetas
Esvaindo-se em milhares, milhares, milhares
De palavras retrocedendo-se confusas, confusas
Confusas, em delgados guardanapos
Feito moscas inconclusas
Andam pelas ruas escrevendo e vendo e vendo
Que eles vêem nos vão dizendo, dizendo
E sendo eles poetas de verdade
Enquanto espiam e piram e piram
Não se cansam de falar
Do que eles juram que não viram
Olham para o céu esses poetas, poetas, poetas
Como se fossem lunetas, lunetas, lunáticas
Lançadas ao espaço e ao mundo inteiro
Inteiro, inteiro, fossem vendo pra
Depois voltar pro Rio de Janeiro
Serviço :
Pra ouvir a versão de Milton Nascimento :
Para ouvir e ver a verão de Clara Sandroni :
Para ouvir e ver a versão original de Leo Masliah :

quarta-feira, 1 de abril de 2009

MUSICAL FM - rádio





Falar de programação de rádio nos dias de hoje é falar sobre o deserto. Todo mundo já sabe como a coisa funciona : há uma barreira intransponível que impede o acesso de artistas independentes ou fora das grandes gravadoras à execução nas rádios. Já há muito tempo, impera a payola (conforme é chamada nos States), o nosso já famoso jabá. Relações comerciais pouco edificantes entre as emissoras de rádio - concessões públicas - e as grandes corporações de entretenimento. Com algumas variações, esse é o panorama predominante. Porisso, ouvimos as mesmíssimas músicas em todas as rádios, com honrosas exceções.

E uma dessas honrosas exceções faz, nos dias de hoje, muita falta aos ouvintes da capital paulista, desde que se tornou mais uma difusora do evangelismo, no início dessa década. Pois antes dessa conversão religiosa, durante toda a segunda metade dos anos 90, ela só tocava música brasileira, música boa e - testemunho eu - sem jabá : rádio Musical FM. 105,7.

Foi a rádio que lançou Chico César, com "À primeira vista". Que lançou Zélia Duncan. Que tocava Celso Viáfora, Eduardo Gudin, Celso Fonseca. Tocava Cássia Eller, mas também tocava Simone Guimarães. Tocava Lulu Santos, mas também tocava Renato Braz. Tocava Rita Lee, mas também tocava Fátima Guedes. Tocava Caetano Veloso, mas também tocava Madan. Tocava Kid Abelha, mas também tocava Rita Ribeiro. Foi a primeira vez que me senti audível como artista, pois duas faixas do disco da dupla Juca Novaes e Edu Santhana tocavam direto na programação.

E a história mais linda que vivi como produtor de festivais ocorreu por causa da Musical FM. Em 1996, quando eu então era um dos artistas mais executados na programação da rádio, convidei Maurício Barreira, diretor de programação da dita cuja, para figurar como jurado na Fampop, em Avaré. Foi um dos melhores anos do evento. Pra comecar, o diretor musical do festival era nada mais, nada menos do que... Toninho Horta ! Além dos shows de Rita Lee, Beth Carvalho, Djavan (patrono do festival) e Kid Abelha, o vencedor ganharia um carro, e faria um show no Tom Brasil, em São Paulo. Chegaram à final fortes concorrentes, como Sérgio Santos, Moacyr Luz, Rafael Altério, Kléber Albuquerque, Keco Brandão, Jorge Vercilo, Luiz Carlos Borges. A minha preferida era uma canção do então pouco conhecido Zeca Baleiro, de nome "Dindinha", interpretada pela cantora Ceumar.

A disputa foi acirrada, e "Dindinha" acabou nem sendo premiada. Ceumar chorou, foi uma frustração, pois a música estava cotada como uma das vencedoras, inclusive por alguns jurados, como o próprio Mauricio Barreira (só como registro, estavam também no júri a cantora Alaíde Costa, os instrumentistas Derico Sciotti e Carlinhos Antunes, o letrista e produtor Costa Netto, o maestro Laércio de Freitas, o jornalista Mauro Dias, o produtor Paulo Amorim).

Naquela época, o disco do festival era gravado ao vivo, pelo craque Egídio Conde, da empresa Audiomobile. Som da melhor qualidade. Mixamos o disco, e dez dias depois da final do evento, já estava eu com duas cópias da "master" do CD nas mãos. Me lembrei imediatamente do Mauricio Barreira, e foi com ele que deixei uma das vias daquele trabalho. Quem sabe a Musical FM não tocaria aquele disco ?

Dois dias depois, ouvi "Dindinha" tocando na rádio. Pra encurtar a história, basta dizer que, três meses depois disso, já era a música mais pedida da programação. Virou hit. Zeca Baleiro e Ceumar não ganharam nenhum dos prêmios do festival, mas o mesmo festival lhes propiciou a abertura de uma porta muito mais importante.

O que aconteceu depois foi digno de filme pastelão. Enquanto a música "estourava" na Musical FM, lá em Avaré tomava posse como prefeito um cidadão que notóriamente não gostava daquele tipo de evento, sendo mais afeiçoado ao mundo country. Tanto que simplesmente não foi retirar o disco do festival, pronto na fábrica. Exatamente o disco que tinha não só "Dindinha" , mas também "Cedo ou tarde" , de Keco Brandao e Rita Altério, na voz de Daisy Cordeiro, que também se tornou um sucesso na mesma Musical FM. Em outras palavras : uma das principais rádios de São Paulo tocava sem parar duas músicas de um disco de um festival do interior que, por motivos bisonhamente políticos, sequer fora lançado. E. aliás, só foi lançado um ano e meio depois, quando a própria rádio, em parceria com a gravadora Dabliú, lançou uma coletânea, intitulada "Gema do novo", contendo as duas canções. Na ocasião, aproveitando tal lançamento, fiz um escândalo na imprensa da região, e poucos dias depois o disco foi retirado da fábrica pela prefeitura.

O vencedor daquele festival foi o excelente compositor carioca Moacyr Luz, com "O tocador é bom". Já ganhara o festival em 1991, com "Alafim", soberba parceria com Aldir Blanc. Naquela edição de 1996, eu queria convidá-lo para o júri, dentro de uma sistemática que tínhamos, de convidar para fazer um show ou colocar como jurado o artista que já tivesse sido premiado ou vencido o evento por mais de uma edição. Quando o convidei para ser jurado, ele relutou, me disse que não gostava de julgar colegas... e me perguntou :

- Qual o premio para o vencedor do festival ?

- Um carro e um show no Tom Brasil

- Posso te responder amanhã ? Vou tentar fazer uma música hoje pra me inscrever no festival. Se não conseguir terminar a música, aceitarei seu convite e irei de jurado.

Fez a música naquela madrugada, me ligou e disse :
- Desculpe, mas vou me inscrever. E vou ganhar o festival.

Ganhou mesmo. E Moacyr Luz também tocava na Musical FM.
Serviço :
Para ouvir um trecho de "Que o tocador é bom": http://amiestreet.com/music/moacyr-luz/mandingueiro/o-tocador-bom

domingo, 29 de março de 2009

AMOROSO - Joao Gilberto - CD





Eis o mestre, o grande divisor de águas da musica popular brasileira.


Sei perfeitamente que João Gilberto é um dos mais polêmicos verbetes da música popular brasileira. Já li e ouvi o chamarem de chato, enganador, produto de marketing...

Pois para mim, é um dos mais importantes - se não o mais importante - artista da história da música popular brasileira, pelo que representou e influenciou seu surgimento como cantor e instrumentista, no final dos anos 50.

Dou o meu testemunho, que coincide com o de muitas pessoas. Comecei a me interessar por música pra valer quando tinha uns onze, doze anos. Até então, além do meu universo de pianista clássico mirim, que tocava de Chopin a Villa Lobos, a música popular se dividia entre o enorme sucesso da Jovem Guarda e os discos da minha mãe, que tinham Caymmi, Sílvio Caldas, Angela Maria e por aí vai... Do dia pra noite, ao mesmo tempo em que me tornei beatlemaníaco, comecei a colecionar os fascículos e discos de uma coleção da Abril Cultural, "Historia da Música Popular Brasileira". Foi lá que ouvi pela primeira vez gravações clássicas originais de obras de Ismael Silva, Noel Rosa, Lupiscínio, Ary Barroso, Braguinha, tudo da perspectiva do autor.
Embora eu tivesse plena consciência da importância histórica daquelas gravações, a maioria delas me soava estéticamente como algo meio ultrapassado, nos arranjos, nas vozes, nos registros... E foi num desses discos que ouvi pela primeira vez uma gravação de João Gilberto, cantando "Morena boca de ouro", de Ary Barroso. Foi um choque. Ali estava tudo : ritmo, harmonia, um violão impressionantemente bem tocado, e com aquela voz pequena, afinadíssima e cheia de suingue. Tudo isso com um frescor, uma leveza que soam como algo moderno até hoje, cinquenta anos depois de suas primeiras gravações.

Ouvi João Gilberto, portanto, tardiamente - quando ele já tinha uns quinze anos de carreira. Imaginem, pois, o impacto que ele causou, em 1958, quando lançou seu primeiro disco. É desse ângulo que ele deve ser ouvido e analisado. Aliás, boa parte da geração dos grandes compositores dos anos 60 testemunhou, quase unanimemente, a revolução que Joao Gilberto causou em suas vidas. Vou reproduzir aqui três depoimentos, tirados do ótimo livro "Eis os bossa nova" , do mestre Zuza Homem de Mello :

"como me mostraram o disco do João cantando " Desafinado" e eu vibrei, vi que era genial e fiquei encantado, Desse dia em diante, passei a me preocupar mais com música do que com o resto das coisas. Foi isso que me deu vontade de me profissionalizar, combinado com o encontro com Gilberto Gil, que também tinha sofrido o mesmo impacto com o aparecimento do disco do João Gilberto" (Caetano Veloso)

"Eu saí correndo da loja e ouvi "Desafinado" dez vezes seguidas, quer dizer, o negócio me entusiasmou mesmo. Acho que todo mundo que faz música atualmente foi muito influenciado por esse movimento e acreditou nele desde o começo" (Chico Buarque)

"...telefonei para a radio perguntando o que era aquilo, quem estava cantando aquele troço, disseram que era o João eu fui à loja de discos procurar, ainda não tinha chegado, mas quando chegou eu comprei, foi aquela paixão absoluta, momentânea e total pela coisa, foi uma paixão que me tomou durante todos aqueles anos subsequentes em que eu comecei a tomar contato com tudo que dizia respeito à Bossa Nova sem nenhum sentido de separação, eu gostava de tudo" (Gilberto Gil).

Nada foi igual a antes após o lançamento do primeiro disco de João Gilberto Não apenas pela gravação das grandes obras de Jobim, em parceria com Vinicius e Newton Mendonca (dentre elas, o " Desafinado"), mas também pelas regravações de músicas de compositores da "bossa velha" , como Ary Barroso, Caymmi, Herivelto Martins, etc. João deu uma nova dimensão a essas obras, seja com a batida do violão que se tornou universal (e que influenciou não só a música brasileira como um todo, mas toda a turma do jazz, e até recentemente artistas como John Pizzarelli, Jamiroquai, Al Jarreau), seja na voz pequena, sem aqueles vibratos e os vozeirões que marcavam a música popular até aquela época. Hoje, perdeu-se a perspectiva da grande revolução causada por ele. E é óbvio que tal revolução se deu também porque as canções de Tom e seus parceiros tinha uma modernidade nas harmonias, melodias e letras, que representavam uma quebra de paradigma em relação ao que existia até então. No entanto, João concentrou todas essas novidades na batida do seu violão, e no seu canto ímpar. Se é verdade que outros já tinham cantado despojadamente (como Mário Reis), ou tenham usado uma batida que pudesse lembrar a dele (como Garoto), a verdade é que nenhum outro artista inseriu em sua arte todos esses elementos tão significantes, influenciando de forma tão marcante a música popular brasileira.

Mas se o primeiro disco de João Gilberto capitalizou toda essa influência, o meu disco de cabeceira é "Amoroso", lançado em 1977, quando eu já era um grande consumidor de MPB. Na época, João vivia nos Estados Unidos, e incluiu no repertório não apenas música brasileira, mas norte-americana ("S' Wonderful", de George e Ira Gershwin), italiana ("Estate" , de Bruno Martino) e mexicana ("Besame Mucho" , de Conselo Vasquez).

Nesse disco, para mim estão as melhores versões de dois clássicos de Jobim : " Wave" e "Triste". Insuperáveis, um primor. Além da voz caracteristica de João, em plena maturidade, e do violão cada vez mais afiado e ritmicamente poderoso, os arranjos de cordas de Claus Ogerman, delicadas e em plena sintonia com o universo musical do artista, criaram a moldura sonora apropriada para que "Amoroso" ficasse registrado como um dos grandes discos da história da musica popular.

Quando tenho dúvida sobre o que ouvir, sempre começo por João Gilberto. É a síntese de tudo o que valorizo e gosto na música popular.



Serviço - Trechos de "Amoroso" podem ser ouvidos no link



E, além do livro citado acima, há outro de meu amigo Zuza Homem de Mello que é referência preciosa para quem quiser saber mais sobre o assunto : "João Gilberto", da editora Publifolha.








domingo, 22 de março de 2009

GRANDE, EDGAR - LUIZ FERNANDO VERÍSSIMO - CRÔNICA


(Postar um texto assim pode parecer meio preguiça de blogueiro. Mas você não vai se arrepender de lê-lo até o fim. Uma das minhas crônicas favoritas do meu cronista favorito. Toda vez que releio esse texto, me pego rindo à toa em várias passagens...)


Já deve ter acontecido com você.

- Não está se lembrando de mim?

Você não está se lembrando dele. Procura, freneticamente, em todas as fichas armazenadas na memória o rosto dele e o nome correspondente, e não encontra. E não há tempo para procurar no arquivo desativado. Ele está ali, na sua frente, sorrindo, os olhos iluminados, antecipando a sua resposta. Lembra ou não lembra?


Neste ponto você tem uma escolha. Há três caminhos a seguir. Um, o curto, grosso e sincero.


- Não.

Você não está se lembrando dele e não tem porque esconder isso. O “Não” seco também pode insinuar uma reprimenda à pergunta. Não se faz uma pergunta assim, potencialmente embaraçosa, a ninguém meu caro. Pelo menos não entre pessoas educadas. Você devia ter vergonha. Não me lembro de você e mesmo que lembrasse não diria. Passe bem.


Outro caminho, menos honesto, mas igualmente razoável, é o da dissimulação.


- Não me diga. Você é o... o...“Não me diga”, no caso, quer dizer “Me diga, me diga”. Você conta com a piedade dele e sabe que cedo ou tarde ele se identificará, para acabar com a sua agonia. Ou você pode dizer algo como:

- Desculpe, deve ser a velhice, mas...

Este também é um apelo à piedade. Significa “Não torture um pobre desmemoriado, diga logo quem você é!” É uma maneira simpática de dizer que você não tem a menor idéia de quem ele é, mas que isso não se deve à insignificância dele e sim a uma deficiência de neurônios sua.

E há o terceiro caminho. O menos racional e recomendável. O que leva à tragédia e à ruína. E o que, naturalmente, você escolhe.

- Claro que estou me lembrando de você! Você não quer magoá-lo, é isso. Há provas estatísticas que o desejo de não magoar os outros está na origem da maioria dos desastres sociais, mas não quer que ele pense que passou na sua vida sem deixar um vestígio sequer. E, mesmo, depois de dizer a frase não há como recuar. Você pulou no abismo. Seja o que Deus quiser. Você ainda arremata:


- Há quanto tempo!Agora tudo dependerá da reação dele. Se for um calhorda, ele o desafiará.


- Então me diga quem eu sou. Neste caso você não tem outra saída senão simular um ataque cardíaco e esperar, falsamente desacordado, que a ambulância venha salvá-lo. Mas ele pode ser misericordioso e dizer apenas:


- Pois é.

Ou:

- Bota tempo nisso.

Você ganhou tempo para pesquisar melhor a memória. Quem é esse cara, meu Deus? Enquanto resgata caixotes com fichas antigas do meio da poeira e das teias de aranha do fundo do cérebro, o mantém à distância com frases neutras como “jabs” verbais.


- Como cê tem passado?


- Bem, bem.


- Parece mentira.


- Puxa. (Um colega da escola. Do serviço militar. Será um parente? Quem é esse cara, meu Deus?)

Ele está falando:

- Pensei que você não fosse me reconhecer...

- O que é isso?!

- Não, porque a gente às vezes se decepciona com as pessoas.

- E eu ia esquecer você? Logo você?

- As pessoas mudam. Sei lá.- Que idéia!(É o Ademar! Não, o Ademar já morreu. Você foi ao enterro dele. O... o... como era o nome dele? Tinha uma perna mecânica. Rezende! Mas como saber se ele tem uma perna mecânica? Você pode chutá-lo amigavelmente. E se chutar a perna boa? Chuta as duas. “Que bom encontrar você!” e paf, chuta uma perna. “Que saudade!” e paf, chuta a outra. Quem é esse cara?)


- É incrível como a gente perde contato.


- É mesmo.


Uma tentativa. É um lance arriscado, mas nesses momentos deve-se ser audacioso.


- Cê tem visto alguém da velha turma?


- Só o Pontes.

- Velho Pontes!(Pontes. Você conhece algum Pontes? Pelo menos agora tem um nome com o qual trabalhar. Uma segunda ficha para localizar no sótão. Pontes, Pontes... )

- Lembra do Croarê?

- Claro!

- Esse eu também encontro, às vezes, no tiro ao alvo.

- Velho Croarê!(Croarê. Tiro ao alvo. Você não conhece nenhum Croarê e nunca fez tiro ao alvo. É inútil. As pistas não estão ajudando. Você decide esquecer toda a cautela e partir para um lance decisivo. Um lance de desespero. O último, antes de apelar para o enfarte.)


- Rezende...

- Quem? Não é ele. Pelo menos isto está esclarecido.

- Não tinha um Rezende na turma?

- Não me lembro.

- Devo estar confundindo. Silêncio. Você sente que está prestes a ser desmascarado.Ele fala:

- Sabe que a Ritinha casou?

- Não!

- Casou.

- Com quem?

- Acho que você não conheceu. O Bituca.Você abandonou todos os escrúpulos. Ao diabo com a cautela. Já que o vexame é inevitável, que ele seja total, arrasador. Você está tomado por uma espécie de euforia terminal. De delírio do abismo. Como que não conhece o Bituca?

- Claro que conheci! Velho Bituca...

- Pois casaram.

É a sua chance. É a saída. Você passa ao ataque.

- E não me avisaram nada?!

- Bem...

- Não. Espera um pouquinho. Todas essas coisas acontecendo, a Ritinha casando com o Bituca, o Croarê dando tiro, e ninguém me avisa nada?!

- É que a gente perdeu o contato e...

- Mas o meu nome está na lista, meu querido. Era só dar um telefonema. Mandar um convite.

- É...-

E você ainda achava que eu não ia reconhecer você. Vocês é que esqueceram de mim!

- Desculpe, Edgar. É que...

- Não desculpo não. Você tem razão. As pessoas mudam...(Edgar. Ele chamou você de Edgar. Você não se chama Edgar. Ele confundiu você com outro. Ele também não tem a mínima idéia de quem você é. O melhor é acabar logo com isso. Aproveitar que ele está na defensiva. Olhar o relógio e fazer cara de “Já?!”)

-Tenho que ir. Olha, foi bom ver você, viu?

- Certo Edgar. E desculpe, hein?

- O que é isso? Precisamos nos ver mais seguido.

- Isso.

- Reunir a velha turma.

- Certo.

- E olha, quando falar com a Ritinha e o Mutuca...

- Bituca.

- E o Bituca, diz que eu mandei um beijo. Tchau, hein?

- Tchau, Edgar! Ao se afastar, você ainda ouve, satisfeito, ele dizer “Grande Edgar”. Mas jura que é a última vez que fará isso. Na próxima vez que alguém lhe perguntar “Você está me reconhecendo?” não dirá nem não. Sairá correndo.

terça-feira, 17 de março de 2009

ESPORÃO RESERVA TINTO - vinho

Não sou especialista em vinhos, apesar de ser a bebida de que mais gosto. Em 1995, os Trovadores viajaram a Portugal, para um show em Guimarães, a primeira capital portuguesa, cidade medieval, belíssima. Nossos anfitriões nos apresentaram os principais vinhos portugueses, dando um especial destaque para o tinto Esporão Reserva, que virou nossa bebida oficial da viagem. Voltei com duas caixas do vinho, que durou ainda alguns anos.

Como disse, não sou sommelier. Não tenho a capacidade de definir os detalhes do que eles chamam de "bouquet" do vinho - o gosto, o cheiro que a bebida exala. Definições como a seguinte, referente ao Esporão Reserva, que extraí do website http://www.wine.com.br/: "vinho tinto escuro. Aromas intensos marcados pela fruta em compota, pelas notas de menta e pela baunilha proveniente do carvalho. Em boca é encorpado, intenso, frutado, robusto, mas redondo e agradável. Taninos macios equilibrados ao bom teor de álcool. Final de boca com sabor levemente tostado". Acho que é por aí mesmo, mas eu jamais teria a capacidade de fazer essa análise tão detalhada e precisa.

Voltamos a Portugal em 1998, para nos apresentarmos na Expo Lisboa, a última exposição internacional do século XX. E, além do privilégio de se apresentar em vários shows na bela capital portuguesa, rever o Tejo, a torre de Belém, as casas de fado, a estátua de Fernando Pessoa, mais uma vez, tive a oportunidade de voltar com uma caixa do Esporão.

Diria que é meu vinho de cabeceira, o que poderá parecer sacrilégio para alguns enólogos e sommeliers. Até porque devem existir muitos vinhos melhores e mais importantes. A propósito, pra quem se interessar pelo assunto (e eu tenho uma teoria : a partir dos 40, os homens cada vez mais se interessam por jazz e por vinho tinto), sugiro um livro que acabo de ler, e que aborda um rocambolesco fato - real - sobre fraudes em leilões de vinhos antigos, além de narrar toda a história da bebida : "O vinho mais caro do mundo - fraude e mistério no mundo dos milionários", de Benjamin Wallace. Vale a pena.

De qualquer maneira, sempre quando volto a beber um cálice do Esporão, me lembro imediatamente dessas viagens e da prazeirosa convivência portuguesa, que acabou resultando numa canção, que compus com meu parceiro Eduardo Santhana, e que estou gravando em meu novo disco:
SAMBA DAS ÍNDIAS
Meu coração de além mar
se emociona, canta e voa
caminhando nos caminhos
de Fernando Pessoa
Meu coração lá das Índias
lá da terra da garoa
contempla o Tejo e entende
as naus, as velas, a proa
Meu coração degredado
feito de indígena canoa
quase compôs esse fado
quase que não te perdoa
mas ele reconhece seus caminhos
e cá meu coração bate à toa
sorrindo embriagado do teu vinho
seguindo pelas ruas de Lisboa
Meu coração de além mar...
Meu coração corda bamba
te encontra e sente saudade
quem sabe fez esse samba
no meio dessa cidade
mas ele reconhece seus caminhos
e cá meu coração bate à toa
sorrindo embriagado do teu vinho
seguindo pelas ruas de Lisboa.



segunda-feira, 16 de março de 2009

SILVIO CALDAS E TROVADORES URBANOS - MISTURA FINA (RJ) - SHOW











Imagine você ser fã de rock e o convidarem para fazer parte da banda do Elvis Presley. Ou que você adora jazz e o convidam para tocar com o Charlie Parker. Pô, mas o Elvis morreu ! E o Charlie Parker também ! Pois é. Acontece que éramos fãs de música popular brasileira e tivemos a oportunidade de tocar com ... Silvio Caldas. Um dos mais importantes artistas da história da cultura popular brasileira. Na época com oitenta e poucos anos. Vivo, vivíssimo, e ainda cantando.

(Sessão didática: Silvio Caldas, ao lado de Orlando Silva e Francisco Alves, representou a tríade de grandes cantores populares do Brasil, na primeira metade do século passado. Elegante, vaidoso, brilhante, foi contemporâneo da chamada era de ouro da música brasileira, a partir dos anos 30. Eternizou canções como "Carinhoso", "Chão de estrelas" (de sua autoria, em parceria com Orestes Barbosa), "Da cor do pecado", "Três lágrimas", "Maria", "No rancho fundo" e muitas outras. Com o advento da bossa nova, no final da década de 50, que tornou "velhas" aquelas vozes possantes e cheias de vibrato de então, Silvio entrou numa fase descendente. Ficaram célebres suas várias "despedidas", que eram substituídas por voltas e novos discos e temporadas.)

Com muito orgulho, entramos na vida de Silvio Caldas. Começou quando o Sesc Pompéia promoveu o projeto "Via paulista" (criado por Eduardo Gudin e Costa Netto), que reunia, a cada edição, dois artistas diferentes do mesmo universo. Alguém se lembrou, então, naquele 1991, de reunir o velho seresteiro Silvio Caldas com aqueles garotos (na época poderíamos ser considerados algo assim...) que tinham aparecido no Jô Soares, falando em serenatas e cantando músicas antigas. Nos convidaram, e nós topamos correndo, por qualquer cachê que fosse. Convidaram o Silvio, ele confirmou... depois desconfirmou, querendo mais dinheiro, e talvez duvidando da competência daquele novo grupo que ousava dividir o palco com ele.

Não nos demos por vencidos : fomos a Atibaia, onde morava, e, após marchas e contramarchas, o localizamos no barbeiro. Mal humorado, não nos deu chance sequer de falarmos, já ralhando que não iria fazer show nenhum, etc. e tal. Foi então que, numa brecha da discussão, engatamos um "Eu sonhei que tu estavas tão linda". A arrogância e a inflexibilidade daquele velho artista foi perdendo força, e quando vimos ele estava aos prantos, nos abraçando, emocionado, com aqueles "jovens" (e éramos...) cantando aquelas músicas do seu tempo...

Foi então que viramos parceiros. Minha irmã Maida virou sua empresária. E fizemos vários outros shows juntos, alguns memoráveis, como no 150 Night Club, do Maksoud Plaza. Obviamente, nós iríamos abrir a noite para ele, o grande artista, de volta ao palco. No dia da estréia, ele chegou ao nosso ensaio e comunicou : vocês vão encerrar. Eu abro a noite. E foi o que ocorreu, durante toda a temporada : o grande Silvio Caldas abria a noite. Os Trovadores Urbanos encerravam.

E o show mais memorável foi no Mistura Fina, na Lagoa, no Rio de Janeiro, em junho de 1996. Era a volta do "Caboclinho querido" à sua cidade natal, onde, durante o período em que lá foi a capital da República, viveu seus anos de ouro. Casa abarratada de gente. Quando subimos ao palco, divisei, na platéia, dentre outros, Mário Lago, Braguinha, João Nogueira, Beth Carvalho. Brinco até hoje que quase saímos do palco para pedir autógrafos nas mesas...

A última gravação da voz do velho seresteiro em disco, para nossa honra, foi em nosso CD "Serenata", de 1995. A música, "Beco sem saída", uma das suas últimas composições, quase o seu canto do cisne. Belíssimo, por sinal : "Agora sem você o que é que eu faço / onde eu jogo o meu cansaço quando eu quero descansar / o que é que eu vou fazer da minha vida / nesse beco sem saída que você quer me deixar / já fiz meu travesseiro do seu braço / e agora o que é que faço / pra me desacostumar / você não vai ficar fazendo graça / a uva também vira passa / você vai se machucar". No dia da gravação, ele estava com um sério problema familiar, e, muito emocionado, chorou ao cantar a música. Aliás, sempre que ouço essa gravação, me arrepio até a medula (no link http://trovadores.uol.com.br/cds/serenata é possível ouvir a música, escolhendo a faixa "Beco sem saída").

Em 1994, o levei como patrono da Fampop, em Avaré. Foi homenageado, recebeu uma troféu das mãos de Zuza Homem de Mello, e no meio daquele alarido de um ginásio de esportes lotado de jovens, pegou o microfone e, "a capella", mandou um Carinhoso de fio a pavio, com seu vozeirão ainda respeitável. Silêncio absoluto. Poucas horas antes, o cantor Tim Maia dera um histórico vexame no mesmo palco, não conseguindo terminar o show de abertura do festival. A imagem que ficou foi do exemplo daquele velho senhor, cuja carreira de cantor tivera início no final dos anos 20, e que ali estava, do alto dos seus oitenta e poucos anos, ensinando aos mais jovens lições sobre a fragilidade da vida, sobre a onipotência do show business, sobre humildade, sobre música...

Estávamos ao seu lado no palco do último show, no Sesc Pompéia, no início de 1998. Era uma apresentação que contava também com a participação de Noite Ilustrada, Dóris Monteiro e Miltinho. Silvio se sentiu mal, saiu do palco, e nunca mais voltou. Subiu pro andar de cima poucos dias depois, depois de nos dar grandes lições de vida. E de música popular brasileira.


OLHO DE PEIXE - LENINE E MARCOS SUZANO - CD



Já contei essa história em algum lugar. Tudo bem, conto de novo !

1989, pré-seleção do Festival de Avaré. Éramos cinco pessoas na minha casa, em SP, ouvindo as centenas de fitas-cassete enviadas para o festival. Chegamos a um momento em que todos ficaram cansados, e nesse tipo de triagem as obras realmente diferenciadas escasseiam. Eis que, subitamente, numa despretensiosa fita surge o som de um violão sem paralelo, com suingue e originalidade, meio João Bosco, meio aquele Gil do "Expresso 2222". Lépidos e atentos, todos pararam e ouviram a canção até o final, sem fôlego, só entremeados pelo silêncio respeitoso e pela indagação persistente : "quem é esse cara ?" Naquele momento todos pensaram a mesma coisa : vai ganhar o festival !

E ganhou mesmo. Dois meses depois daquela audição, daquele jeito, só de violão e voz, num ginásio com quase três mil pessoas. Era Oswaldo Lenine Pimentel, o Lenine, interpretando o imbatível "Samba do quilombo", letra e música dele, depois gravada pelo grupo Batacotô e por Gilberto Gil (a foto acima, à direita, é da sua apresentação no festival).

Voltou à Fampop no ano seguinte, quando recebeu o terceiro lugar, com "Virou areia", música que ele só viria a gravar em 2006, no álbum "In cité". A mesma canção viria a ser registrada, depois do festival, nas vozes de Dionne Warwick e MPB-4.

Desde então, Avaré ficou indissociavelmente ligada à sua carreira.

Ficamos amigos. Em 1992, fui à sua casa, no Rio de Janeiro, e ele me mostrou algumas faixas, ainda inconclusas, do disco que estava gravando, chamando a atenção para a coragem do projeto : um disco só de pandeiro, violão e voz !

Mas que pandeiro ! E que violão ! Era o embrião do "Olho de peixe", um dos meus discos de cabeceira, uma das obras de referência da década de 90 na música popular brasileira.

A importância do disco é que ele transpira brasilidade por todos os poros, tanto no pandeiro de Marcos Suzano, como no suingue do violão de Lenine. E a brasilidade continua presente mesmo nas faixas com acento pop, como em "Acredite ou não", que abre o disco, parceria com o paraibano Bráulio Tavares : "Estranho / bizarro / tudo isso aconteceu / inesperado / normal só tem você e eu", diz o refrão.

Lenine gosta de Caymmi, de Jobim, de Caetano. Mas também gosta de Lulu Santos e de Rolling Stones. Nesse sentido, é um filho dileto da Tropicália, da mistura, das diferenças, num balaio que, nas letras, também mistura ficção científica e histórias em quadrinhos. Isso tudo resultou num disco originalíssimo, em onze faixas autorais, isoladamente ou em parceria.

Bráulio Tavares, também vencedor do festival de Avaré (em 90), é o principal parceiro, contribuindo, além de "Acredite ou não", com as ótima "Miragem do porto" (depois gravada por Elba Ramalho), "O que é bonito" (com os meus versos preferidos"eu gosto é do inacabado/ o imperfeito, o estragado/ o que dançou/ eu quero mais erosão, menos granito/ namorar o zero e o não/ escrever tudo o que desprezo/ e desprezar tudo o que acredito/ eu não quero a gravação, não/ eu quero o grito"), a suingada "Caribenha nação" e a ciranda"Gandaia das ondas". A emocionante "Mais além", também com acento pop, traz, além de Bráulio , a participação autoral de Ivan Santos e Lula Queiroga, este também o parceiro de Lenine em "O último por do sol".

No meio de tantas canções marcantes e bem feitas, se destaca uma que, ao meu ver, é uma das raras que pode ser chamada de "clássica", na produção da música popular brasileira dos últimos 20 anos : "Leão do norte", faixa 9 do CD. A começar pela condução do violão de Lenine, originalíssima, e que se tornou uma influência, a partir daí, para as novas gerações de compositores e instrumentistas. Conheço dezenas de compositores jovens, na casa dos 20 anos, que tem essa forma de tocar como influência. E "Leão do norte" não é só a condução do violão, mas o vigor musical, melódico, e a letra excelente de Paulo César Pinheiro, homenageando o Pernambuco natal de Lenine, com o conhecido refrão "Eu sou mameluco/ sou de casa forte/ sou de Pernambuco, eu sou o leão do norte".

"Leão do norte" é uma das minhas canções preferidas, um modelo de música bem-feita, e extraordinariamente bem executada, só com violão, percussão e voz, na gravação do disco.

"Olho de peixe" representa a demonstração inequívoca do talento desse pernambucano com nome de líder bolchevique (seu pai era comunista), que influenciou fortemente a música popular brasileira contemporânea. Vinte anos depois, com sua carreira consolidada internacionalmente, ainda não me sai da cabeça a audição daquela fita, na Alameda Franca, 1188, apartamento 32, quando ouvi, pela primeira vez, a música de Lenine.

domingo, 15 de março de 2009

BASÍLIO, O PÉ DE ANJO - CORINTHIANS 1x0 PONTE PRETA - GOL




São Paulo, 13 de outubro de 1977
Eu estava lá.


Um dos gols da minha prateleira da memória. Desculpem-me os não-corinthianos, mas era um tempo em que as torcidas não brigavam no estádio. O Corinthians não ganhava um título há 23 anos, desde o longínquo ano de 1954. Era 1977, eu tinha 18, e portanto nunca tinha visto o meu time ser campeão. Morava numa república de estudantes em São Paulo, recém-chegado de Avaré. Comigo moravam mais um outro corinthiano, três santistas, um palmeirense. Naquele dia 13 de outubro, mais três são paulinos tinham chegado de Avaré, exclusivamente para assistir ao jogo. Fomos os nove para o Morumbi lotado. Todos torciam para o Corinthians ganhar da Ponte Preta, ser o campeão paulista e acabar com aquela agonia. Imaginem se hoje isso seria possível ! No mínimo os palmeirenses e são paulinos iriam engrossar a torcida pontepretana...

Era o jogo final, decisivo. E, faltando pouco mais de dez minutos para acabar, saiu o gol de Basilio, o "pé de anjo". Festa inesquecível, emocionante, a torcida invadindo o campo, gente atravessando o gramado de joelhos. Fomos para a Avenida Paulista, ao lado da nossa república, que ficava na Alameda Santos, atrás da Fiesp. A avenida toda lotada, em festa, até o amanhecer. Repleta de palmeirenses, sãopaulinos, santistas, além, é claro, da esmagadora maioria corinthiana. Festa do bem, sem depredações, sem brigas, sem tiros. Era a maior festa que São Paulo já presenciara, diziam os mais velhos. Eu, caipira recém chegado, nunca mais vi outra igual, e reitero isso mesmo agora, com memória de paulistano convertido, trinta e poucos anos depois.
E acho que nunca verei.
Pra quem quiser ver o gol, com a narração do mestre Osmar Santos, o link é

BURNIER E CARTIER - FOTO PARA CAPA DE LP - CD

Eis um disco belo, estranho e raro, que merece ser explorado. Quando eu tinha os meus quatorze anos, e me apaixonara definitivamente pela música popular, assisti na TV ao primeiro festival com o qual me envolvi pra valer, pelo menos como telespectador, acompanhando do começo ao fim, lendo as materias em jornais, etc. Era o festival Abertura, da TV Globo, que, dentre outros méritos, lançou definitivamente o Djavan para o grande público (foi o segundo colocado, com a musica " Fato consumado"). Quem ganhou foi Carlinhos Vergueiro, com "Como um ladrão". Meu querido amigo Walter Franco, vaiadíssimo, foi o terceiro colocado, com " Muito tudo", e, na reapresentação da música, em meio aos apupos do público, plácidamente comecou a jogar cartas, em cima do palco, com o maestro Julio Medaglia. Foi um festival muito interessante, no qual, além das premiadas, a minha preferência recaiu sobre uma dupla de cantores/compositores com nome esquisito, que apresentou uma musica estranha, com sotaque pop, que não ganhou nenhum prêmio, mas me ganhou. "Ficaram nus" , Burnier e Cartier.

Meses depois, foi lancado pela gravadora EMI aquele que - descobri depois - já era o segundo disco da dupla. Uma capa estranha e original, só com as fotos dos dois, com o titulo "Foto para capa de LP". Virou disco de cabeceira.

O que chama a atenção no disco é o uso dos violões e das guitarras. Os dois, Octávio Burnier e Cláudio Cartier, são exímios instrumentistas. Em algumas, faixas, há algum eco do Grupo D`Alma e de outros grupos instrumentais de violões. Mas, no geral, o disco tem uma cara e uma personalidade bastante marcantes, meio pop, meio erudito, meio MPB. Algumas das músicas começam quase como um estudo de violão clássico, e de repente surgem guitarras, e quartetos de cordas. Faltou a ótima "Ficaram nus" no disco, a música do festival. Mas ela é compensada com duas que remetem ao mesmo universo : "Catarina canguru" e "Minha mãe não sabe de mim", ambas com condução precisa dos dois violões da dupla. As minhas preferidas são "Recreio" (também gravada num dos primeiros discos de Zizi Possi), "Elogio da Loucura" (essa, o maior exemplo da fusão dos violões com as guitarras, a dicotomia MPB/pop) e "Dia ferido".

As letras são o que menos importa nas canções do disco. Não que sejam ruins. Mas o que mais se destaca são as melodias, os violões, as guitarras, as vozes, os arranjos.

Um disco diferenciado, especial. Nunca mais existiu outro disco dessa dupla. Octavio Burnier, sobrinho do compositor e instrumentista Luiz Bonfá, virou Tavinho Bonfá, autor de músicas mais para o pop (dentre elas "Clarear", sucesso com o Roupa Nova), e com quem me encontrei em vários festivais por aí. Fizemos até uma música juntos em Cascavel (PR), mas certamente ele não se lembrará. Eu tampouco. Já Cláudio Cartier, depois desse disco, segui carreira como arranjador e compositor, emplacando sucessos como "Saigon".

Ficou o registro do encontro de ambos nesse belo disco, relançado em CD há alguns anos, pela gravadora EMI. Talvez ainda sejam encontrados alguns exemplares em sebos ou em sites de vendas de usados.

Serviço - Trechos das músicas do disco podem ser ouvidas no link http://www.cliquemusic.com.br/artistas/artistas.asp?Status=DISCO&Nu_Disco=10447

POEMA EM LINHA RETA


POEMA EM LINHA RETA - Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa) - meu poema predileto de meu poeta de cabeceira



Para ser lido todos os dias, pela manhã, para que cada um de nós se dispa de qualquer pompa, cerimônia, títulos e cargos, e comece o dia se conscientizando da  insignificância humana. Enfim, não há muito o que comentar. Basta ler o poema 



Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.


E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.


Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...


Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma covardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,


Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?


Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?


Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza

sábado, 14 de março de 2009

FOTOGRAFIAS - TAIGUARA - CD



A gravadora EMI acaba de lançar o CD "Fotografias" , um dos meus discos de cabeceira. Um dos mais raros trabalhos fonográficos da MPB (disputado a tapa em sebos), do compositor e cantor Taiguara, comercializado originalmente em vinil, em 1973. Eu tinha tanta paúra de perder o meu bolachão original, que através dos anos comprei mais dois exemplares, em sebos, naturalmente, para ficarem como "back up". Afinal de contas, na época em que o disco foi lançado, eu era estudante em Avaré (SP), cidade onde nasci, e assisti, como parte do projeto "Circuito Universitário", ao show de Taiguara lançando esse disco, no antigo Cine Santa Cruz (hoje mais uma igreja evangélica, daquelas que acabaram com cinemas, teatros, etc., pelo país inteiro). Na ocasião, era eu um pianista erudito pré-adolescente, que gostava dos Beatles, do Pink Floyd, do Led Zepellin e de MPB. Foi o primeiro show que presenciei ao vivo, o que me impactou profundamente.

E o " Fotografias" se tornou, desde então, um dos meus discos de cabeceira.

Do meu Top Ten.

E olha que tenho disco pra caramba.

Tirante à parte o envolvimento pessoal com o show, e a inesquecível experiência de ter assistido ao lançamento do álbum, o fato é que o disco é de uma beleza rara.

(Antes de mais nada, parênteses para um breve historico sobre o Taiguara, pra saberem do que estou falando. Até porque uma amiga me perguntou recentemente : " o pessoal já não sabe nem quem é o Chico Buarque, será que algum dia saberão que existiu o Taiguara ?" Artista lançado no auge dos festivais, na segunda metade dos anos 60, emplacou vários sucessos, sempre numa linha romântica, como " Hoje" , " Universo do teu corpo" , " Piano e viola" , "Helena, Helena, Helena" ... Mas na verdade, ao contrário do que os seus primeiros discos transpareciam, era um compositor antenado com a conjuntura política da epoca, e se tornou, já no início da década de 70, o autor mais censurado do pais. Suas canções com fundo político eram, invariavelmente, proibidas, e apenas as baladas amorosas e canções mais líricas tinham autorização para gravação. Porisso, ele cunhou cada vez mais a imagem de romântico com seu público.
Mas " Fotografias" é exatamente o disco de passagem para um outro momento, mais descompromissado com o mercado, que desaguaria no album seguinte, o mítico e raríssimo"Imira, Tayra, Ipy, Taiguara" , gravado em Londres, e jamais relançado no Brasil. Sou um dos poucos que comprou esse disco original, nos anos 70. Taiguara voltou ao Brasil, mas nunca mais foi o mesmo : com o fim da ditadura, suas canções e seus discos se tornaram cada vez mais mensagens políticas explícitas, e o Brasil já era outro. Sua obra nunca mais repercutiu como antes.)

Findo o parênteses, voltemos ao " Fotografias". Que começa com uma das canções mais belas daqueles e de todos os tempos, " Que as crianças cantem livres" , letra e música de primeira linha, com o piano de Taiguara na linha de frente, ele que também era um grande instrumentista. A letra, embora lírica, tem um conteúdo político evidente :" Vê como um fogo brando funde o ferro duro/ vê como o asfalto é seu jardim se voce crer/ que há um sol nascente avermelhando o céu escuro/ chamando os homens pro seu tempo de viver/ e que as criancas cantem livres sobre os muros/ e ensinem sonho ao que não pode amar sem dor/ e que o passado abra os presentes pro futuro/ que não dormiu e preparou o amanhecer". O arranjo é do próprio Taiguara, que também toca órgão e piano elétrico. Uma gravação que se tornou um verdadeiro clássico da MPB pós-festivais.

O piano está também presente com destaque na belissima " Romina e Juliano" (incrível como essa música ficou "escondida", e não foi regravada por ninguém importante) , que quando o disco saiu em vinil, era a " primeira faixa do lado B", e que na fase CD passou a ser a sétima faixa do disco. Taiguara era um dos poucos songwriters daqueles tempos que tinha o piano como instrumento, assim como Ivan Lins, Zé Rodrix e Marcos Valle. Guilherme Arantes não tinha nem aparecido ainda, pelo menos como carreira solo.

Outros destaques do disco são o chorinho " Cartinha pro Leblon", que tem um inspirado solo de bandoneon e o arranjo de Ubirajara Silva, pai de Taiguara, uruguaio de nascimento; e a belissima canção de amor "Fotografias" , com um arranjo sensível e delicado, contando com Taiguara no piano Fender Rhodes, uma das marcas registradas da época, além de Paulo Moura no clarinete e Mauricio Einhorn na gaita. Um luxo. Mas há muito mais no disco : a suingada "Flauta Livre", que tem o autor tocando flauta, as canções "Saudade de Marisa" e "A Companheira" (em belo arranjo de Francis Hime, que também toca piano na faixa).

A lista dos instrumentistas que participaram do disco, além dos craques já citados, é de uma verdadeira seleção brasileira : Nivaldo Ornelas (que dá um show na faixa "Nova Iorque"), Novelli, Wilson das Neves, Marlui Miranda...

Pela excelência dos arranjos, dos instrumentistas, das canções, é um disco atemporal, que ainda hoje soa incrivelmente moderno. Mostra a plenitude de um artista, como instrumentista, arranjador, autor de melodias, harmonias e letras, e cantor com grandes recursos, no auge de sua capacidade.

E, afinal, " Fotografias" tem duas razões para inaugurar esse blog, como uma das minhas paixões de cabeceira. Primeiro, por ter sido lançado, finalmente, em CD nesse março de 2009, razão pela qual já posso relaxar com minhas cópias em vinil. E, em segundo lugar, porque acabo de gravar, com os Trovadores Urbanos, um disco que abrange os anos 70. E do qual uma das faixas é exatamente " Que as criancas cantem livres" . Aguardem.


Serviço : No site da fnac dá pra ouvir todas as faixas, e comprar o disco por míseros R$ 15,00. O link é http://www.fnac.com.br/product.aspx?idProduct=5099923452220&partner=buscape_cd&res=1024